IMPRENSA E CANGAÇO – A REPORTAGEM QUE REINVENTOU LAMPIÃO

A
revista carioca A Noite Ilustrada publicou a maior cobertura da imprensa
sobre a morte do mais famoso cangaceiro, fato que evidenciava sua
importância como notícia e lenda.
A capa da edição da quarta-feira 9 de
agosto de 1938, da revista A Noite Ilustrada, lançada 11 dias depois do
massacre na Fazenda Angicos, município de Piranhas, entre Alagoas e
Sergipe, onde morreram Virgulino Ferreira da Silva (1898-1938), o
Lampião, Maria Bonita e mais nove pessoas, é emblemática. Em vez de
estampar o mais famoso e temido cangaceiro do País, a imagem trazia em
destaque outro bandoleiro, Corisco, conhecido pela polícia e pela
imprensa como Diabo Louro. A mensagem parecia clara: sem Lampião, o
cangaço sobreviveria pelo herdeiro e compadre de seu antigo chefe. Rei
morto, rei posto? Não. A legenda explicava que aquela foto havia sido
encontrada entre muitas outras em um dos bolsos do famoso criminoso,
quando os soldados da “volante” foram saquear seus bolsos, em busca de
joias e dinheiro, no momento em que seu corpo jazia, cravado de balas.Em 28 páginas sobre o massacre, a revista, comandada pelos jornalistas Gil Pereira e Vasco Lima, trazia a primeira grande reportagem sobre o assunto, que se tornou aula e marco do jornalismo na época. Motivo: a publicação tinha conseguido mandar uma equipe – fotógrafo e repórter – do Rio de Janeiro até o local, a dois mil quilômetros de distância, em pouco mais de 24 horas. Ao que parece, foi uma operação de guerra. Tão logo as primeiras notícias da morte de Lampião chegaram às redações do Rio de Janeiro, via telegrama, nenhum jornal ou revista teria se interessado em mandar equipes.

Os jornalistas desceram em Barreiras, no cerrado baiano, e de lá cruzaram de carro ou de trem boa parte do território baiano, até chegar à cidade de Piranhas. Na manhã seguinte, eles se depararam com a tropa de 49 homens do tenente João Bezerra na pequena cidade de Pedras, no meio do caminho até Santana do Ipanema, onde ficava o batalhão que realizou a operação militar.
Os enviados se tornaram a primeira equipe de jornalistas a visitar a “gruta” de Angicos, depois do massacre. Acabaram por fazer fotos que se tornaram famosas ao longo dos 75 anos seguintes e foram reproduzidas incontáveis vezes por jornais, revistas e livros sobre o tema. São imagens que chocaram os leitores. Logo na página três, aparecia a cabeça decepada quase em tamanho real da mulher mais famosa do cangaço e um pequeno texto dizia: “Companheira de Lampião, fotografada em Pedra, durante o regresso da ‘volante’ (tropa) do tenente João Bezerra, quando ainda conservava a regularidade dos traços e a serenidade da expressão. Mesmo depois da morte violenta, justificando a alcunha, a cabeça da bandoleira mostra vestígios de tranquila beleza”.

Nas páginas centrais, como pôster de 43 cm x 86 cm, A Noite Ilustrada estampava a foto mais famosa da história do banditismo no Brasil, que se tornou símbolo do grau de selvageria que dominava mocinhos e bandidos nos confins da caatinga brasileira: as cabeças decepadas dos mortos de Angicos, arrumadas na escadaria de uma igreja, identificadas com uma etiqueta ao lado de cada uma. Apareciam, pela ordem de cima para baixo, da esquerda para a direita: Diferente, Desconhecido, Cajarana, Enedina, Caixa de Fósforos, Mergulhão, Elétrico, Luis Pedro, Maria Bonita e, sozinha na parte de baixo, Lampião.
Ao redor, parte dos pertences recolhidos – armas e balas em quantidade, embornais e uma máquina de costura aparentemente da marca Singer. No local do tiroteio, há uma foto que mostra com números e setas como tudo aconteceu: onde estavam os soldados e em que ponto Lampião foi mortalmente atingido, sem ter chance de qualquer reação.
A notícia tinha corrido o Brasil como fogo em pólvora. Todos os grandes jornais destacaram o fato na primeira página. Por 18 anos, Lampião e seu bando atacaram, principalmente, pequenas e miseráveis localidades em que a população vivia sob o chicote e o domínio eleitoreiro das dinastias dos coronéis. A imprensa das regiões Sul e Sudeste sempre se interessou pelo assunto, destacava a crueldade de Lampião e de seus comparsas e o heroísmo da polícia em sua captura. Ficaram famosos nomes como do sargento Odilon Flor que, por oito anos caçou e perseguiu o cangaceiro, e o do tenente Campos de Menezes, que o perseguia desde a década anterior – por diversas vezes, Menezes e seus homens trocaram tiros com Lampião. Mas a glória coube ao desconhecido tenente Bezerra, transformado em herói nacional literalmente da madrugada para o dia.

Prosseguiram eles, na apresentação. “Releva notar o acervo de fotos feitas no próprio local do combate entre a polícia alagoana e o bando do ‘Rei do Cangaço’, a grota situada na fazenda Angicos, das quais se encontram na última página da revista, e testemunham não apenas a coragem, mas a temeridade dos nossos auxiliares.” No mesmo texto, destacou o pequeno vidro encontrado no corpo de Lampião, cheio de um pó amarelo, que, “verificou-se nesta capital, por experiência feita no laboratório de Pesquisas Científicas da Polícia, ser um veneno poderoso. É também um pormenor de sensível interesse”, porque se sabia, “por informações anteriores”, que era uma prevenção para não cair com vida em mãos das autoridades.

O que se nota em toda a edição de A Noite Ilustrada é que em nenhum lugar são ditos os nomes do repórter e do fotógrafo, embora eles aparecessem em duas fotos e fossem assim identificados. Em uma delas, o fotógrafo, de óculos, posava à frente dos voluntários e soldados, sorrindo para a câmera. Em outra, o jornalista cumprimentava o aspirante Ferreira, cercados de soldados que apoiavam as mãos nos ombros dos dois. Uma legenda informava: “O corpo do bandoleiro foi identificado e fotografado por um dos enviados de A Noite Ilustrada na grota de Angicos, sendo que outros ali voltaram, ainda, depois, a fim de minudenciar o terreno fotograficamente, facilitando uma reconstituição do choque entre a polícia e os bandoleiros”. A edição trazia também o primeiro episódio de uma série em quadrinhos sobre a vida do cangaceiro, roteirizada e ilustrada por Euclides L. Santos. Com dez quadrinhos cada página, iniciava uma série que seria publicada duas vezes por semana no jornal A Noite, nos cinco meses seguintes.

Lampião jamais imaginou que poderia ser morto em Angicos. Aquele era seu esconderijo havia muitos anos e ele acreditava, mesmo se traído, uma volante não conseguiria chegar ali. O terreno, no dizer de um geógrafo entrevistado pela revista, contou que o local era “singularmente ingrato”. E explicou que ficava “entalado entre a margem do rio e a montanha pedregosa e íngreme que da mesma margem começa logo a erguer-se, apertada entre gargantas e pequenas contraescarpas de serra, e ingrato, estéril e árido, ostentando rochedos de granito e penhascos inacessíveis. Essa topografia era da conveniência para os cangaceiros que, por isso mesmo, sempre procuravam Angicos, nas imediações de Piranhas, quando se sentiam inseguros e acossados”. Mas a força policial, comandada pelo tenente João Bezerra, reunia veteranos combatentes do cangaço, não teve dificuldades alcançar aquele ponto.
Os cangaceiros haviam chegado a Angicos no dia anterior, 27 de julho, exaustos, famintos. Era noite, chovia muito e todos dormiam em suas barracas. O aguaceiro, em vez de dificultar a aproximação de alguma volante, ajudou, graças ao barulho da água que caía. Tanto que nem os cães de Maria Bonita pressentiram. Bezerra relatou depois que o bombardeio ainda não tinha começado, por volta das 5h15 do dia 28, e teve de ser precipitado. No momento em que os cangaceiros levantaram para rezar o ofício, de acordo com o ritual estabelecido pelo Rei do Cangaço, e se preparavam para tomar café, um cangaceiro deu o alarme. Tarde demais. Bezerra gritou: “Fogo”. Os soldados dispararam suas metralhadoras portáteis, que cuspiram dezenas de balas por minuto, por cerca de 20 minutos. Corisco e os outros que estavam mais distantes, e acabaram protegidos pelos rochedos, conseguiram se arrastar e fugiram.

Lampião foi um dos primeiros a morrer. Dentro dos costumes da época, Maria Bonita, gravemente ferida, teve sua cabeça decepada – fizeram o mesmo com o marido, em seguida. Na euforia que se seguiu, sem se preocupar se alguém tinha escapado, os policiais saquearam os cadáveres e os mutilaram com selvageria. Também foram degolados vivos Quinta-Feira e Mergulhão que estavam feridos. Um dos policiais, com ódio de Lampião, deu um golpe de coronha de fuzil na cabeça do cangaceiro tão forte que a deformou. Afirmou-se depois que todas as cabeças foram salgadas e colocadas em latas de querosene, com aguardente e cal, enquanto os corpos foram abandonados e devorados por urubus. Para evitar a disseminação de doenças, dias depois foi colocada creolina sobre os corpos. Como alguns urubus morreram intoxicados pela substância, esse fato ajudou a difundir a crença de que eles haviam sido envenenados antes do ataque, com alimentos entregues pelo coiteiro traidor. Outra versão dava conta de que as cabeças não passaram por qualquer processo de conservação nas 48 horas que se seguiram ao massacre. E mesmo inchadas – como se vê nas fotos –, foram vistas por milhares de curiosos nas cidades onde o pelotão passou.
Em Pedra, ao alcançar a volante, a equipe de A Noite Ilustrada conseguiu reunir 47 dos 49 homens que estiveram em Angicos para uma foto histórica. Duas outras mostravam a multidão que se concentrou em uma praça em Maceió para ver as cabeças dos 11 cangaceiros. “Em Piranhas, as tropas chegaram inesperadamente, quando terminara a feira ali erguida, e quando, portanto, ninguém imaginava a possibilidade de acontecimento de tal monta. A polícia alagoana, conduzindo os troféus do sangrento encontro, foi recebida por aclamações populares intensas, mais vivas e constantes, à medida que os populares se inteiravam do êxito completo do combate com o bando de cangaceiros. Ferido, embora sem gravidade maior, o Tenente Bezerra, cuja valentia é conhecida em todo sertão circundante, era visado particularmente nos aplausos do povo aglomerado”.

Em Santana do Ipanema, “esse jubilo popular atingiu maiores proporções”. Segundo o repórter, as cabeças dos cangaceiros, que haviam sido fotografadas em Pedra, foram novamente expostas à curiosidade pública “e numerosas pessoas reconheceram a cabeça decepada de Lampião e de outros seus comparsas do crime”. O espetáculo bizarro prosseguiu em Maceió. No Instituto Médico Legal de Aracaju, as cabeças foram medidas, pesadas e examinadas pelo médico Carlos Menezes. Suas observações fizeram com que os criminalistas mudassem a teoria de que um homem bom não viraria um cangaceiro, e este deveria ter características sui generis.

Enquanto isso, as fotos de A Noite Ilustrada corriam o Brasil e o mundo. Sem autorias definidas, perderam sua identidade, ao mesmo tempo que se tornavam documento de uma época. Por mais que a revista chamasse Lampião de facínora, o resultado de seu esforço jornalístico mantinha a força de uma história e não conseguiu evitar que de suas páginas nascesse uma lenda que, como tal, ainda fascina. Suas fotos e textos, enfim, por mais que se tenha feito um trabalho de reportagem louvável, não evitou que Lampião continuasse a andar pela caatinga, mesmo como um fantasma, cada vez mais vivo na imaginação das pessoas pela coragem de cabra macho que era em enfrentar os poderosos. Que se publique a lenda.
Porta Voz de Vargas
A redação de A Noite Ilustrada funcionava na Praça Mauá, 7, centro do Rio de Janeiro, e onde ficavam redações de jornais e revistas, e emissoras de rádio importantes. Lançada em 1930, a publicação surgira como um marco por sua qualidade de impressão, graças ao moderno sistema de rotogravura. Pertencia ao jornal A Noite, mesmo diário fundado por Irineu Marinho e Geraldo Rocha. A Noite sobrevivera ao longo da década de 1930 sob o duro castigo de ter apoiado o grupo derrotado pela Revolução de 1930.

Lampião Lia “A Noite Ilustrada”
Pelo acaso, Lampião acabou por se tornar garoto propaganda de A Noite Ilustrada. Dois anos antes de morrer, ele aparecia em uma de suas mais famosas fotos, feita pelo fotógrafo e caixeiro viajante Benjamin abraão (1890-1938), mostrando um exemplar da famosa revista carioca, ao lado de maria Bonita, que aparecia sentada, acariciando os cães Ligeiro e Guarany. A edição, de 27 de maio de 1936, trazia na capa a nadadora americana Anna Evers, uma das promessas da olimpíada de Berlim daquele ano.


Autor – Gonçalo Junior
Fonte – http://brasileiros.com.br/2013/07/a-reportagem-que-reinventou-lampiao/
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